Medidas e Normas Anticorrupção no Esporte
06/06/2016

Por: José Ricardo Rezende


As entidades transnacionais de administração do desporto (ETADs) e suas afiliadas pelo mundo criaram um sistema hegemônico em praticamente todas as modalidades, fruto da firme determinação de uma classe de dirigentes que atuou na primeira metade do século vinte, sem qualquer interesse financeiro, adotando em razão disso e como padrão, o modelo associativo sem fins lucrativos, hierarquizado e sob a condição de exclusividade de representação territorial, naquilo que ficou conhecido como regime de monopólio desportivo.

Referido “monopólio” não despertou maior indagação no transcorrer do século vinte, sendo defendido como meio eficaz e legítimo de expansão global para fins de integração dos povos através do esporte, isto é, tornando possível promover um intercâmbio cada vez maior e frequente entre comunidades, em especial superando barreiras linguísticas, substituída por métodos, padrões, regras e sinais universais (lex ludica e lex sportiva). Tudo isso foi feito pelos mecenas do desporto. A propósito, não foram poucos os dirigentes dessa época, amadora por excelência, que comprometeram boa parte de suas fortunas a fim de levar adiante o ideal esportivo, sendo o caso mais conhecido o do Barão de Coubertin, exaurido em suas finanças pessoais diante dos elevados gastos que realizou em favor do COI, sendo contrário que qualquer de seus membros tirasse proveito econômico - por mínimo que fosse - da sua condição de representante da entidade, devendo inclusive custear todas as suas despesas (viagem, hospedagem, transporte e alimentação) para participação em reuniões e congressos olímpicos. Se por um lado isso elitizava o comando do COI e imprimia um legado amadorístico também na gestão das Federações Internacionais, de outro não havia contraponto ao regime de monopólio ou preocupações mais sérias com questões de ordem ética e moral na conduta dos dirigentes, senão congratulações pela sua benemerência em favor do movimento olímpico e desportivo.

Mas tudo isso mudou a partir da segunda metade do século passado, quando o profissionalismo na gestão passou a ser visto como a única forma de assegurar perenidade às ETADs e permitir a expansão das suas atividades, que até então tinham suas receitas restritas às taxas e contribuições associativas, apoio de mecenas e bilheteria das competições, que mal davam para subsidiar seus custos operacionais. Porém, como o advento da televisão em meados do século XX, novas perspectivas se abriram pela possibilidade de negociação dos direitos de transmissão dos eventos esportivos (broadcasting), conhecido atualmente no Brasil como “direito de arena”, atraindo em virtude disso o interesse de empresas na exposição de suas marcas no ambiente do evento, por meio de placas de publicidade no entorno da arena e depois decalcado nos uniformes dos atletas, configurando o patrocínio esportivo em substituição ao apoio descompromissado dos mecenas.

As transmissões pela TV popularizaram ainda mais os acontecimentos do mundo esportivo e alavancaram a expansão da antes tímida e restrita indústria de materiais esportivos, fazendo surgir o mercado global da moda sport/fitness. Esse turbilhão econômico crescente aliado à penetração social fez com que as entidades desportivas (sem fins lucrativos) se vissem na posse de valiosas propriedades comerciais e de marketing relacionadas às suas atividades, disputadíssimas pelos conglomerados de mídia, empresas de material esportivo e de outros setores. Nesse ritmo, o que antes era uma atividade secundária, benemérita e que tomava tempo e recurso de seus administradores, revestiu-se de uma importância crucial para o sucesso de empreendimentos comerciais, de modo que os dirigentes esportivos passaram a sofrer um assédio cada vez mais intenso, que não raro ultrapassava a linha da ética e da moralidade. A abundância de recursos atraiu também o interesse de pessoas que enxergavam na ocupação de cargos estratégicos a possibilidade de realização de negócios em benefício próprio, iniciando um processo de corrosão institucional e enriquecimento ilícito, respaldado pela fragilidade de controle dos seus órgãos internos (também suscetíveis), que somado ao princípio da mínima intervenção estatal, criaram um ambiente propício de manipulação e abuso de direito, comprometendo, em alguns casos, a histórica incolumidade do desporto, que sempre fez por merecer prestígio social e proteção estatal.

Enfim, depois de iniciado o processo de mercantilização do desporto, não foram poucas as acusações de fraude e corrupção envolvendo dirigentes de entidades desportivas. Frente a esse quadro, para evitar que o desporto seja dominado por aproveitadores sempre à espreita, é preciso que neste século adotemos novos métodos de combate à corrupção que o estiola, sob pena de assistirmos um desmoronamento de proporções épicas do seu prestígio social, e ainda que os tempos sejam outros, a história dos Jogos Olímpicos, extinto ao final da Antiguidade, revela o quanto isso é possível em momentos de grandes transformações sociais, como a que estamos vivendo na atualidade da revolução tecnológica.

A UNESCO e a proteção ao desporto

Em defesa de uma "Convenção Internacional contra a Corrupção e pela Moralidade nos Esportes"

O recente “caso de corrupção na FIFA”, investigado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos através do FBI (Federal Bureau of Investigation) e que motivou a prisão de sete de seus dirigentes na Suíça, às vésperas de um congresso da entidade (27/05/15), além da ordem de captura pela Interpol de outros indiciados, reacendeu a discussão quanto ao papel da atuação estatal na seara desportiva, e de certo modo revela que da mesma forma que as entidades desportivas se organizaram em um amplo sistema transnacional, é preciso que as nações pelo mundo busquem, por meio de seus organismos internacionais, valer-se de métodos capazes de influenciar um modelo de gestão transparente para o segmento.

Nesse aspecto, cabe lembrar que a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), desempenhou importante papel em defesa do direito social ao desporto, em 1968, por meio do Manifesto Mundial do Esporte, sendo que em 1978 articulou a Carta Internacional da Educação Física e do Esporte, influenciando na modernização da legislação de inúmeros países, inclusive do Brasil, ao reconhecer as múltiplas dimensões sociais do desporto. Em outro momento, a UNESCO apoiou a constituição da Agência Mundial Antidoping (AMA/ WADA), chegando ao ponto de promulgar uma Convenção Internacional contra o Doping nos Esportes (2005), adotada por centenas de países e organizações desportivas.

Isso posto, indaga-se como sendo papel da UNESCO atuar no sentido de fixar diretrizes que assegurem a integridade, moralidade e transparência na gestão mundial do desporto, de modo que as entidades do setor não fiquem suscetíveis à dominação por grupos com interesses escusos e sirvam de instrumento de enriquecimento ilícito dos falsos dirigentes, bem como utilizadas para manobras ilícitas (v.g. sonegação de impostos e lavagem de dinheiro). Quem sabe seja o momento da UNESCO colocar em pauta a discussão de uma Convenção Internacional contra a Corrupção e pela Moralidade nos Esportes, estatuindo diretrizes que coíbam a ação nefasta de aproveitadores e criminosos disfarçados de dirigentes esportivos, que colocam em risco a integridade e credibilidade do sistema federativo internacional, arduamente construído em meio a crises econômicas, guerras mundiais e depois a guerra fria. Lembre-se que o COI aprovou por ocasião da 127ª Sessão plenária realiza em Mônaco no final de 2014, a denominada Agenda Olímpica 2020, com 40 recomendações que definem um roteiro estratégico para o futuro do Movimento Olímpico. Parece oportuno neste momento ampliar a pauta da agenda com um apêndice específico, visando implementar ações de combate à corrupção no esporte, protagonizando o COI, ao lado da UNESCO, o mesmo papel que desempenharam na criação do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/ CAS) e da Agência Mundial Antidoping (AMA/WADA).

A tripartição dos poderes (executivo, legislativo e judiciário), pedra angular das nações que cultuam o Estado de Direito e o respeito aos Direitos Humanos, afigura-se como um modelo a ser adotado com maior determinação no âmbito das organizações desportivas. Por mais que se alegue já existir uma divisão interna de poderes no seio dessas associações, por força dos seus estatutos, a fragilidade revelada ao longo do tempo e os casos notórios de corrupção e outras imoralidades cometidas e muitas vezes acobertadas (mal investigadas e arquivadas), demonstram a insuficiência e incapacidade de reação frente ao “crime organizado” (que transforma entidades desportivas em “organizações criminosas”), de modo que é preciso a instituição de uma nova ordem jurídica para o setor, diante da sua atual dimensão macroeconômica, sendo induvidoso que os dirigentes de boa índole nada tem a temer neste sentido, senão exatamente o contrário. A questão é definir o modelo a ser adotado, que pode inclusive estar vinculado ao TAS/CAS, readequado para assumir novas atribuições, com departamentos de fiscalização e câmaras de julgamento compostas por membros indicados pelos governos signatários de uma futura Convenção Internacional contra a Corrupção e pela Moralidade nos Esportes, cuja sujeição pelas entidades transnacionais de administração do desporto (ETADs), logicamente, ficará ao seu critério, diante do inabalável princípio geral da não intervenção estatal no âmbito das associações privadas (de atividade lícita), sendo certo que a não adesão inabilitará quanto ao recebimento de privilégios públicos, abrindo caminho para que novos atores possam atuar na organização transnacional do desporto, esvaziando aquelas dominadas por dirigentes corruptos.

Dentre as medidas para alcançar os objetivos da Convenção proposta, pode-se adotar o regime de reexame necessário dos processos relacionados à violação de Códigos de Ética, sem descartar o direito de investigação e instauração de inquérito frente a denúncias formalmente veiculadas e devidamente instruídas de provas, assegurada a ampla defesa e o contraditório, diante de um Código de Ética Desportiva do TAS/CAS, cujos julgados condenatórios, ao final, além da penalização dos infratores de acordo com seus dispositivos, deverão ser remetidos ao Ministério Público do país onde eventuais crimes tenham sido praticados.

Além disso, outras diretrizes podem ser criadas por meio da Convenção, estimulando, por exemplo:

(1) a limitação estatutária dos mandatos dos dirigentes e do direito de reeleição;

(2) a adoção de planos de cargos e salários dos dirigentes e funcionários, disciplinando também o pagamento de bonificações, ajudas de custo e indenizações, de forma justa, equilibrada e transparente;

(3) a aprovação das contas da entidade vinculada à prévia auditoria externa de agentes credenciados;

(4) a concessão de benefícios e transferência de recursos aos filiados somente através de deliberação em assembleia, limitando os poderes dos órgãos executivos;

(5) a adoção de procedimentos licitatórios que assegurem isonomia de tratamento aos concorrentes e lisura nos contratos firmados pelas entidades e nas negociações de suas propriedades comerciais e de marketing;

(6) a coibição do nepotismo;

(7) a transparência e publicidade dos atos de administração financeira da entidade.

A adoção da Convenção pelas ETADs, induzindo seus membros filiados a seguirem pelo mesmo caminho, dentro de um curto espaço de tempo poderá provocar uma completa mudança de mentalidade e de atitudes de governança no segmento, e que, de um modo geral, exercerá influência na conduta dos dirigentes dos clubes filiados, fortalecendo inclusive o conceito de fair play financeiro. Esse movimento (ciclo virtuoso) significará melhores préstimos à sociedade e maior respeito para com os atletas e outros profissionais do esporte, resgatando princípios que sempre foram sagrados aos dirigentes da primeira geração.

Fonte:

REZENDE, José Ricardo. Tratado de Direito Desportivo (São Paulo: All Print, 2016).


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