O Vínculo do Atleta na Prática Desportiva Não Profissional
13/10/2016

O texto a seguir foi extraído do livro TRATADO DE DIREITO DESPORTIVO (pag. 483 a 500). Autor: José Ricardo Rezende

CAPÍTULO 13 - DA PRÁTICA DESPORTIVA NÃO-PROFISSIONAL

De acordo com a Lei nº 9.615/98 o desporto de rendimento pode ser organizado e praticado de modo profissional ou não-profissional, nos exatos termos do art. 3º e seu parágrafo único. O primeiro modo é “caracterizado pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva”. Já o segundo é “identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio”. Em comum, atendem à mesma finalidade de “obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações”.


Assim sendo, a atividade desportiva de rendimento, a teor da lei de normas gerais, pode ser, ou não, enquadrada como uma relação de emprego. Neste capítulo vamos abordar, especificamente, o desporto de rendimento organizado e praticado de modo não-profissional. Diga-se, desde já, que esse é o modo adotado por praticamente todas as modalidades esportivas desenvolvidas no país, à exceção do futebol, que, obrigatoriamente, na forma do art. 94 da mesma lei, deve adotar a versão profissional, sendo facultativa essa opção às demais modalidades, a teor do seu parágrafo único.


Ou seja, de acordo com a legislação brasileira, a organização e prática do desporto de rendimento de modo não-profissional é a regra geral, sendo o profissionalismo uma exceção futebolística. Contudo, apesar da evidente importância da matéria, seu estudo doutrinário é pouco desenvolvido, quase inexistente. Não bastasse, é objeto de sérias divergências jurisprudenciais no âmbito da Justiça do Trabalho, conforme será exposto. Completa esse quadro a precariedade de regulamentação da prática não-profissional no âmbito da legislação estatal e da lex sportiva. Isso somado, evidencia a insegurança jurídica que afeta aos muitos que atuam neste segmento. É nosso desejo, portanto, neste capítulo, trazer ao debate minucioso essa importante matéria do Direito Desportivo, identificando as lacunas na lei e nas normas das entidades de administração do desporto, as divergências de interpretação e as alternativas, ainda que mínimas, para conferir maior estabilidade nas relações jurídicas havidas entre entidades desportivas e atletas, por este modo frequente de realização do desporto de rendimento.

13.1. A FINALIDADE DE OBTER RESULTADOS E INTEGRAR PESSOAS

De início, chamamos atenção para o fato do reconhecimento legal da possibilidade de organização e prática do desporto de rendimento de modo não-profissional, ao lado do profissional. À primeira vista, pode parecer algo sem maior importância, senão no sentido de sinalizar a existência (ou não) de um contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva. No entanto, considerando que a finalidade do desporto de rendimento é a mesma, independente de realizar-se de modo profissional ou não-profissional, qual seja, buscando a “obtenção de resultados” (por meio de competição), torna-se evidente que estes somente serão alcançados (produzidos) com base na especialização (adestramento) dos atletas, circunstância que demanda treinamento intenso, regular e regime de dedicação específica à respectiva modalidade esportiva, principalmente diante da proposta de “integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações”, conceito reforçado pelo art. 3º, inc. III, do Dec. nº 7.984/13, in verbis:


Ou seja, o que integra as “pessoas e comunidades do país”, através do esporte de rendimento, são as competições regionais, estaduais e nacionais organizadas pelas entidades de administração do desporto (Federações, Confederações e Ligas), “e estas com as de outras nações”, as competições internacionais organizadas pelas entidades transnacionais de administração de desporto, como é o caso dos torneios continentais, campeonatos mundiais e Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Logo, para obtenção de “resultados de superação ou de performance relacionados aos esportes” dentro dessa escala de grandeza, é função esperada dos clubes (entidades de prática desportiva) exercer o papel de direção das atividades (planejamento, organização, controle e disciplina), ou seja, articulando recursos, determinando objetivos e metas, estabelecendo a rotina de treinamentos em local apropriado sob desígnio de uma comissão técnica especializada, selecionando atletas e fixando as obrigações relativas ao uso de uniformes e equipamentos esportivos, cuidando para que o praticante mantenha excelente condição atlética, inclusive por meio de um regime de alimentação balanceada, demandando o cumprimento de horários rígidos e programas de preparação física, técnica e tática, associada à necessidade constante de deslocamentos para participação em competições, tudo de acordo com regulamentos e normas internas e das entidades de administração do desporto.


13.1.1. Realização de um objetivo comum e vínculos necessários: Assim unidos e comprometidos, cada clube e seu plantel de atletas busca a obtenção de resultados dentro de competições organizadas regularmente pelas entidades de administração do desporto. Há, portanto, uma relação simbiótica entre as partes, na qual ambos são beneficiados ao buscarem atingir um objetivo comum, compartilhando glórias e fracassos durante a jornada esportiva. Essa é a dinâmica secular do desporto na vertente do rendimento. Consortes, o clube depende do atleta e este daquele, para que possa acontecer a prática do desporto formal, salvo raras exceções, possíveis apenas no âmbito das modalidades individuais (ex.: atletismo, tênis, automobilismo), através da filiação direta de atletas junto a entidades de administração (registro avulso). Porém, nas modalidades coletivas (ex.: basquete, futsal, voleibol, handebol), a atividade dos atletas dependerá sempre da iniciativa de um clube em estruturar uma equipe e inscrevê-los em competições. Por isso se qualificam como entidades de prática desportiva, cumpridora de relevante função social dentro do Sistema Nacional do Desporto (Lei nº 9.615/98, art. 13), especialmente quando constituída na forma de associação de fins não econômicos (sem fins lucrativos), merecendo assim permanente proteção do Estado, posto ser o seu dever fomentar as práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um (CF/88, art. 217). “No Brasil, o associativismo releva-se como um instrumental a serviço dos cidadãos para o exercício de direitos” (GARCIA, 2007, p. 59). Essa cadeia de relações necessárias (vínculos desportivos) para que floresça na sociedade o desporto de rendimento, é inclusive prevista na Lei nº 9.615/98, conforme segue:




Em bom termo, o que se espera no âmbito da prática desportiva de rendimento é uma sinergia entre clube e atleta, uma coesão em prol do objetivo maior de alcançar resultados em competições organizadas pelas entidades de administração, cada qual cumprindo um papel, sendo que a lei admite que essa relação se estabeleça de modo profissional ou não-profissional, isto é, reconhecendo o atleta com um empregado do clube sob o manto de um contrato de trabalho e garantias previdenciárias, ou não, neste caso, “sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio”. Inexistindo obrigatoriedade jurídica, a definição do modo como irá se estabelecer o vínculo desportivo entre o clube e o atleta dependerá da livre negociação entre as partes, conforme se deflui da leitura do art. 26 da Lei nº 9.615/98, in verbis:


Por óbvio que a opção pelo vínculo profissional decorrerá, fundamentalmente, diante da expectativa de participação em competições profissionais, nos termos do parágrafo único, conforme venham a ser organizadas pelas entidades de administração e ligas da  respectiva modalidade (vide 13.7).

13.1.2. Proibição do profissionalismo: Se por um lado a legislação assegura facultatividade na organização e prática do desporto de rendimento de modo profissional (obrigando apenas o futebol), de outro veda a prática do profissionalismo em determinadas situações, conforme segue:



Trata-se de uma determinação que remonta ao período anterior à Constituição de 1988, tanto que mantém a terminologia da época. Mais que isso, revela-se como norma despropositada, considerando que o modo profissional de organização e prática está vinculado ao conceito do desporto de rendimento, na forma do art. 3º da Lei Pelé. Logo, naturalmente não há de se falar em profissionalismo no desporto educacional (e também no desporto de participação). Tampouco as Forças Armadas brasileiras (desporto militar) podem ser qualificadas como entidades de prática desportiva, aptas para formalização de Contratos Especiais de Trabalho Desportivo. Por fim, a mesma lei já cuida do enquadramento não-profissional da atividade dos menores de dezesseis anos, por meio dos contratos de formação desportiva.

13.1.3. Natureza da atividade do atleta de rendimento: Diante das colocações feitas até aqui, percebe-se que o legislador brasileiro reconheceu duas formas legítimas de vínculo desportivo (profissional e não-profissional) frente à realização de uma mesma atividade (desporto de rendimento). Nesse ponto, antes de prosseguirmos, é fundamental esclarecer a diferença entre relação de trabalho e relação de emprego, diante de um contrato de atividade, que segundo Jean Vicent, citado por Orlando Gomes e Elson Gottschalk (2000, p. 27) e replicado por Alice Monteiro de Barros (2005, p. 199), serve para designar “todos os contratos nos quais a atividade pessoal de uma das partes constitui o objeto da convenção ou uma das obrigações que ela comporta”, observando em seguida que “os contratos de atividade geram uma relação de trabalho, da qual a relação de emprego é uma espécie”. Logo, é certo que nem toda a relação de trabalho preconiza a existência de uma relação de emprego.


Nesse passo, à luz da melhor doutrina do Direito do Trabalho, é perfeitamente adequado o critério adotado pelo legislador brasileiro, ao enquadrar a atividade desportiva de rendimento como sendo materializadora de uma relação jurídica de emprego ou não, conforme venha a ser convencionado entre o clube e o atleta, no gozo da facultatividade inserida no parágrafo único do art. 94 da Lei Pelé. No mesmo sentido é o julgado que segue.


Pode-se dizer então, para fins didáticos, que o desporto praticado de modo não-profissional se aproxima do conceito de trabalho voluntário, regulado pela Lei nº 9.608/98, que de igual modo (quando adequadamente constituído), “não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista previdenciária ou afim”, sendo a concessão de incentivos materiais ao atleta similar a ajuda de custo paga ao prestador de serviço voluntário, como a diferença dos incentivos serem bem mais amplos e permissivos, inclusive instrumentalizado por meio das chamadas bolsas, além de comportar o patrocínio, conforme adiante será estudado.

13.1.4. O equívoco da interpretação restritiva da atividade desportiva não-profissional: Em alguns julgados da Justiça do Trabalho encontra-se na fundamentação a identificação de caráter não lúdico da atividade do atleta, para fins de justificar o convencimento do magistrado quanto ao reconhecimento do profissionalismo. Ou seja, o fato de ficar provado na fase instrutória do processo, de que o atleta-reclamante obedecia a um rígido esquema de treinamento e regular participação em competições organizadas pelas entidades de administração do desporto, aliado ao recebimento de valores em pecúnia, seriam suficientes para provar que não se tratou de uma atividade exercida com espírito lúdico, por prazer e diversão, merecendo assim ser reconhecida como uma relação de emprego (modo profissional). Ocorre que esse entendimento deixa de considerar que o modo profissional e não-profissional de organização e prática são espécies do gênero desporto de rendimento, cuja finalidade é a obtenção de resultados em competições organizadas dentro de uma ótica formal, sendo que o aspecto lúdico está relacionado à prática não-formal, desdobrada em desporto de participação. De igual modo, é erro grosseiro de defesa alegar ludicidade como argumento para tentar afastar a caracterização do exercício de atividade profissional, sendo desatualizada a doutrina, posterior à publicação da Lei nº 9.981/00, que insiste em qualificar atletas, em contraposição aos profissionais, como sendo “amadores” diletantes que exercitam o desporto por “prazer e diversão” (BARROS, 2005, p. 280). Enfim, não é da natureza conceitual do desporto de rendimento a destinação lúdica, pois ela não se ajusta à finalidade de obter resultados em competições nacionais e internacionais.

13.2. REGIME JURÍDICO DO DESPORTO PROFISSIONAL E NÃO-PROFISSIONAL

Nas condições até aqui reportadas, nota-se que o desporto de rendimento organizado e praticado de modo profissional é interpretado como atividade econômica e fator de produção, equiparando clube a empresa e atleta a empregado, de modo que é regulado pelo Direito Desportivo e Direito do Trabalho, sendo essa determinação expressa no art. 29, § 4º da Lei nº 9.615/98 (Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, ...), enquanto o não-profissional é encarado como uma função social e direito de cada um, sedimentado pelo Direito Desportivo e Direito Civil.


13.2.1. Interesse contraposto x interesse comum: Dessa forma, a bipolaridade jurídica do desporto de rendimento é uma realidade social legalmente reconhecida e assegurada, ao identificá-lo como atividade econômica sujeita aos riscos do negócio, que contrata, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços desportivos (modo profissional / interesse contraposto), sem descartar a possibilidade de sua realização também como atividade não econômica, de modo que o exercício de uma mesma atividade individual desportiva não configura necessariamente uma relação de emprego (modo não-profissional / interesse comum). Antecipe-se, no entanto, que o atleta na condição de não-profissional, diferentemente do atleta profissional, exerce a atividade desportiva com facultatividade, de maneira que não é subordinado juridicamente ao poder de direção do clube, podendo desobedecer ordens ou deixar de praticar o desporto a qualquer tempo, sem que isso caracterize uma violação de dever ou implique na obrigação de indenização, conforme será estudado adiante.

13.2.2. Fator de produção x função social: Conforme afirmado, uma mesma atividade desportiva de rendimento é tratada de modo diferenciado pela legislação, ao subsumir a finalidade de “obtenção de resultados”, de um lado, como fator de produção (modo profissional), colocando clube e atleta em posição de alteridade (interesses contrapostos), “o que significa ser o trabalho executado em favor de outrem, que aufere os frutos do trabalho de alguém e, portanto, deverá assumir os riscos do empreendimento (BARROS, 2005, p. 213); e de outro, como função social (modo não-profissional), executada em favor de uma causa de interesse comum, sob proteção da lei, sendo albergada essa diferenciação pelo art. 217, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

13.2.3. O equívoco interpretativo entre “amador” e “não-profissional”: Ao contrário da tese que estamos a defender, muitos interpretes da legislação em questão entendem como inadmissível o reconhecimento da licitude do vínculo não-profissional entre atletas e entidades de prática desportiva para fins de disputa de determinadas competições de alto rendimento, como é o caso dos campeonatos estaduais, nacionais e mesmo internacionais, principalmente os de modalidades coletivas da categoria adulto, diante do grau de especialização e envolvimento inicialmente explanado, qualificando-os como a execução de uma atividade-trabalho sob proteção da CLT, em detrimento da norma constitucional e do disposto na Lei nº 9.615/98 enquanto lex specialis, ou seja, fazendo tabula rasa dos princípios da diferenciação e da especialização. Entretanto, é inconteste que a lei de normas gerais não estabelece limites para a organização e prática do desporto de rendimento de modo não-profissional (senão excetuando o futebol e o vínculo do atleta estrangeiro), por exemplo, limitando-o aos menores de 21 anos, ou proibindo a captação de patrocínios e destinação de incentivos materiais na forma de bolsas e auxílios financeiros, senão exatamente o contrário, diante do preconizado no Dec. nº 7.984/13, que regulamenta a lei de normas gerais sobre desportos, conforme será visto adiante. Para muitos é intolerável que a legislação admita uma situação dessas, em que as principais competições e ídolos do esporte brasileiro (à exceção do futebol), via de regra, sejam tratados como não-profissionais. E nesse ponto estamos diante do mesmo fenômeno da inconveniente conceituação verificada em razão da prática desportiva formal e não-formal (vide 11.4.5). Lá como cá, o interprete apressado chega à conclusão de que a competição e o atleta não-profissional são a síntese do antigo “esporte amador”, com todas aquelas restrições vistas ao final do capítulo anterior, em especial a impossibilidade de geração de receitas robustas pelo clube e a obtenção de ganhos pelo atleta, como se isso fosse um “pecado capital”, uma imoralidade. Orlando Gomes (2002, p. 184), citando De Page, lembra que “a confusão de palavras acarreta sempre a confusão de coisas”. Nessas circunstâncias, melhor seria se o legislador tivesse adotado a definição “atleta incentivado” (ou patrocinado), para o praticante do desporto organizado de modo não-profissional, dando origem ao conceito subjacente de “competição incentivada” (ou patrocinada), como de fato quase todas são em nível de rendimento (ou podem ser, de acordo com a lei). Restaria assim melhor posicionada a situação do atleta e da competição de que participa, evitando a exumação do “esporte amador” desprovido de recursos externos, lembrando que ele foi morto e enterrado com a publicação da Lei nº 9.981/00, apesar de parte da doutrina e da jurisprudência ressuscitá-lo como um zumbi, assombrando os dirigentes de clubes ao fazer confusão e embaralhar conceitos absolutamente antagônicos, revelando perigoso desconhecimento (ou descontentamento) quanto à possibilidade de circulação de riquezas na esfera do desporto organizado e praticado de modo não-profissional, fato que torna essas figuras jurídicas (amador e não-profissional) absolutamente distintas e incompatíveis, a recomendar que não sejam equiparadas.


Essa radical mudança na redação do inciso II do parágrafo único do art. 3º da Lei nº 9.615/98 foi fruto da realidade social, dentro do processo de reinterpretação e democratização do desporto, abandonando a utopia do atleta amador, acalentada pela aristocracia/burguesia no transcorrer do século passado em benefício próprio (distinção de classes), conforme já estudado. Ou seja, a partir da publicação da Lei nº 9.981/00, agora no âmbito do desporto não-profissional, podem as entidades desportivas  (administração e prática) angariar receitas diversas para sua promoção e difusão, sem que isso seja considerado exercício de atividade econômica, incluída a possibilidade dos atletas também se beneficiarem de incentivos materiais e de patrocínio, extraindo vantagens pessoais da sua atividade e podendo a ela dedicar-se até com exclusividade, se assim for o seu desejo e reunir condições suficientes para tanto.


13.2.5. A diferenciação do atleta profissional e não-profissional: Feitas essas considerações, não há espaço para diferenciação dos atletas profissionais e não-profissionais simplesmente por razões de ordem econômica (como era ao tempo do puritanismo amador), pois ainda que o primeiro tenha a garantia do salário-mínimo, o segundo terá sempre aberta a possibilidade de recebimento de incentivos materiais e de patrocínio, inclusive na forma de bolsa, benefício ou auxílio financeiro, além da exploração do “direito de imagem”, que é comum a ambos, o que torna despropositada a insistência de alguns em dizer tratar-se de “amadorismo marrom”. Isso é coisa do passado. “Em um universo desportivo globalizado, o faturamento por patrocínio pode ser muito maior do que a remuneração proveniente de contrato de trabalho” (MASSON, 2014, p. 150). Do mesmo modo, não se pode diferenciá-los em razão do grau de exigência a que serão submetidos, sob o comando de uma comissão técnica multidisciplinar (supervisor, técnico, auxiliar, preparador físico, fisioterapeuta, etc.), considerando que na busca pelos resultados desportivos a rotina de treinamentos e participação em competições é a mesma, variando de intensidade conforme a modalidade (e muitas são mais intensas que o futebol). Discordamos, portanto, da posição de Amauri Mascaro Nascimento (2009, p. 446-447), que ainda usando a expressão “atleta amador” distingue-o do profissional em face da “intenção com que o esporte é praticado”. Ora, se a intenção do atleta é praticar o desporto profissionalmente, de boa-fé não deve firmar contrato que não seja o de trabalho desportivo. Nesse ponto é bom lembrar que o futebol se transformou em modalidade profissional no Brasil, desde a década de 1930, não por força da lei, mas por imposição de um crescente mercado transnacional de transação de atletas (vide 10.2.5), que inclusive deu origem ao instrumento jurídico do passe (norma da FIFA), implicando em estabilidade contratual e exploração econômica das transferências de atletas entre clubes. A lei veio depois (Decreto-Lei nº 3.199/41), tendo por fim “exercer rigorosa vigilância sobre o profissionalismo, com o objetivo de mantê-lo dentro de princípios de estrita moralidade” (art. 3º, “b”, parte final), quando então o Estado passa a disciplinar o instituto do passe (atualmente substituído pela cláusula compensatória desportiva e cláusula indenizatória desportiva, conforme será estudado no próximo capítulo). Já sob a vigência da Lei nº 6.251/75, o Decreto nº 80.228/77 previa em seu art. 69 que era “admitida a prática do profissionalismo no futebol, no pugilismo, no golfe, no automobilismo e no motociclismo”. Essa determinação foi abandonada depois pela Lei nº 8.672/93 (Lei Zico), quando se adota a previsão genérica de que “atletas, entidades de prática desportiva e entidades de administração do desporto são livres para organizar a atividade profissional de sua modalidade, respeitados os termos desta lei” (art. 18). Em seguida a Lei nº 9.615/98 passa a dizer que “atletas e entidades de prática desportiva são livres para organizar a atividade profissional, qualquer que seja sua modalidade, respeitados os termos desta Lei” (art. 26), sendo obrigatória essa forma apenas para o futebol (art. 94), estatuindo também que “a presença de atleta de nacionalidade estrangeira, com visto temporário de trabalho previsto no inciso V do art. 13 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, como integrante da equipe de competição da entidade de prática desportiva, caracteriza para os termos desta Lei, a prática desportiva profissional (...)” (art. 46), recuando quanto a essa determinação em 2011, ao modificar a redação deste artigo por meio da Lei nº 12.395, deixando de existir essa caracterização. Dito isso, firmamos posição de que, à luz da legislação vigente, a diferenciação do atleta profissional em relação ao não-profissional só pode ser alcançada diante de um fato: a liberdade de prática, notadamente a relativa ao vínculo desportivo, refletida na forma de insubordinação jurídica. Ou seja, independente de outros aspectos factuais, como a intenção do atleta, o status da competição (alto nível), a existência de patrocinadores e visibilidade em mídia, o regime de treinamento (atividade continuada e dirigida por comissão técnica), a presença de players estrangeiros e a obtenção de ganhos pelos atletas (muitas vezes superior ao dos profissionais), na forma da lei, o que diferencia um atleta profissional do não-profissional, é a liberdade de prática em razão do vínculo desportivo. Assim sendo, o atleta não-profissional pode engajar-se voluntariamente nas atividades desportivas promovidas pelo clube, em comum acordo com este, inclusive negociando incentivos materiais e patrocínio (e/ou licenciamento do uso da sua imagem), conquanto lhe seja preservada a liberdade de prática, isto é, a possibilidade de desvinculação unilateral e imotivada, a qualquer tempo, insubmisso de sanção disciplinar ou de ordem econômica. De outro lado, o atleta profissional é aquele que possui um contrato de trabalho junto a uma entidade de prática desportiva, também chamado de Contrato Especial de Trabalho Desportivo (CETD), “com vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos” (art. 30 da Lei nº 9.615/98), sendo que este deverá conter, obrigatoriamente, uma cláusula indenizatória desportiva e uma cláusula compensatória desportiva (art. 28, incisos I e II da Lei nº 9.615/98), para caso de rompimento ante tempus, sendo oportuno ler o § 5º do art. 28 da Lei Pelé, relativo ao vínculo desportivo do atleta profissional:



Desta maneira, tendo o vínculo desportivo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, além de convalidar o poder de direção do clube sobre o atleta, seu dissolvimento operar-se-á somente por uma das formas  estabelecidas em lei, limitando, por consequência, a liberdade de prática do atleta profissional, em especial quanto à possibilidade de transferência para outro clube (constituição de um novo vínculo empregatício-desportivo). O mesmo não ocorre em relação ao atleta não-profissional, já que a lei, ao caracterizá-lo, condiciona a presença da liberdade de prática, subsumida na inexistência de contrato de trabalho, que afasta também o poder de direção. Assim sendo, cabe pontuar as dimensões da referida liberdade de prática e como ela se preserva, para fins de manutenção da condição de não-profissional.


Na sequência do Cap. 13 do livro tratamos sobre os seguintes temas:

13.3. DIMENSÕES DA LIBERDADE DE PRÁTICA DO ATLETA NÃO-PROFISSIONAL

13.3.1. Insubordinação jurídico-trabalhista e relação obrigacional voluntária

13.3.2. Das relações de direito

13.3.2.1. Natureza sinalagmática (bilateralidade) e dissolução do vínculo desportivo

13.3.2.2. Abalo das condições de saúde do atleta por lesão desportiva

13.3.3. Das relações de fato

13.3.3.1. Voluntariedade e discricionariedade

13.3.3.2. Subordinação técnica-desportiva de natureza voluntária

13.3.3.3. Assédio moral

13.3.3.4. Desvio de finalidade

13.4. PRECARIEDADE DO VÍNCULO DESPORTIVO DO MODO NÃO-PROFISSIONAL

13.4.1. A contextualização futebolística da prática profissional

13.5. OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO E O ATLETA NÃO-PROFISSIONAL

13.5.1. Primazia da realidade desportiva

13.6. DIREITOS E DEVERES NA ORGANIZAÇÃO DA PRÁTICA DESPORTIVA NÃO-PROFISSIONAL

13.7. OBRIGAÇÕES DAS ENTIDADES DE ADMINISTRAÇÃO DO DESPORTO

13.7.1. Aplicação do princípio da diferenciação

13.7.2. A questão da “carta de liberação”

13.7.3. A declaração da natureza da competição

13.7.4. A situação do atleta estrangeiro em competições não-profissionais

13.7.5. Geração de renda na organização do desporto de modo não-profissional

13.8. AS GARANTIAS AO ATLETA NÃO-PROFISSIONAL

13.8.1. Planejamento da carreira esportiva

13.8.2. Proteção quanto aos riscos inerentes da atividade desportiva

13.8.2.1. Casos excepcionais de relação de consumo

13.8.3. Exploração do “direito de imagem”

13.8.3.1. Garantia financeira obtida através da licença de uso da imagem

13.9. OS COMPROMISSOS DA ENTIDADE DE PRÁTICA DESPORTIVA (CLUBE)

13.10. OS INCENTIVOS MATERIAIS

13.10.1. Precificação dos incentivos materiais (bolsa)

13.10.2. Pagamento em pecúnia

13.10.3. Diferença entre “ajuda de custo” e “bolsa”

13.10.4. Onerosidade e dependência econômica

13.11. INSTRUMENTO (CONTRATO) PARA CONCESSÃO DE INCENTIVOS MATERIAIS

13.11.1. Das partes

13.11.2. Probidade e boa-fé

13.11.3. Do objeto

13.11.4. Dos incentivos materiais e da bolsa-auxílio

13.11.5. Dos deveres da entidade de prática desportiva

13.11.6. Da atividade do atleta

13.11.7. Do inadimplemento na concessão dos incentivos

13.11.8. Das alterações contratuais

13.11.9. Da vigência do contrato

13.11.10. Do vínculo desportivo (formação, manutenção e dissolução)

13.11.11. Da resilição do contrato

13.11.12. Das disposições gerais

13.11.13. Cláusula de eleição do foro e meios alternativos para solução de litígios

13.11.14. Conclusão

13.12. O PATROCÍNIO

13.12.1. O período da vedação (amadorismo)

13.12.2. A liberação do patrocínio no desporto não-profissional

13.12.3. O patrocínio fruído pela exploração da imagem do atleta não-profissional

13.13. DO CONTRATO DE LICENÇA DE USO DA IMAGEM DO ATLETA NÃO-PROFISSIONAL

13.13.1. Considerandos

13.13.2. Do objeto do contrato

13.13.3. Dos direitos e das obrigações do licenciado e do licenciante

13.13.4. Da remuneração pela licença de uso da imagem do atleta

13.13.5. Do prazo de vigência

13.13.6. Da rescisão antecipada

13.13.7. Disposições gerais

13.13.8. Cláusula de foro

13.14. CONCLUSÃO


Fonte:

TRATADO DE DIREITO DESPORTIVO

1ª edição, 2016 | All Print Editora

Autor: José Ricardo Rezende

748 páginas | Formato: 16x23cm.

ISBN: 978-85-411-1068-6

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